Lendas icoenses: Os mistérios do Sobrado do Barão *

Ali, vizinho à Igreja do Bonfim viveu, por mais de cinquenta anos, Bernardo Duarte Brandão, o Barão do Crato, sua irmã dona Maria do Rosário, e muitos escravos e escravas, até 1880, quando o Barão morreu em Paris.

Daí por diante, só lendas, morcegos e fantasmas, habitaram a velha edificação, até 1920, quando passou a ser habitado por gente viva novamente.

As tradições contam que o seu Dú era implacável com seus escravos e que muitos e muitas infelizes, ele pessoalmente supliciava, impiedosamente, e os torturava de forma tal, até o sangue correr, de tantas chicotadas e maltratos cruéis, que só o silêncio da história é contumaz testemunha.

Dizem que muitos negros foram mortos pelos castigos aplicados pelo Barão, que os feitores enterravam no quintal do sobrado, ou nas margens arenosas do Rio Salgado, cúmplices dos assassinatos, que a lei e a fé encobriam.

Não se sabe ao certo se isso era verdade ou simplesmente calúnias dos seus inimigos, que não eram poucos. Mas, a deduzir pelos terríveis tempos da escravidão, certamente era não seria o único senhor de escravos a não praticar tais perversidades contra os negros. Restaria à arqueologia moderna comprovar, ou não, esses fatos.

Ao final do século XIX pairavam, ainda, fofocas maldosas e caluniosas. Seja contra sua pessoa ou seus parentes. Uma delas era que Bernardo tentara casar-se com a própria irmã, inclusive pedindo licença à Santa Sé, fato que a história não confirma.

Era uma acusação de incesto, repudiada pela sociedade. Todavia, os dois morreram solteiros e sem filhos, vivendo um eterno amor platônico, na solidão de irmãos. Ele na política e suas intrigas, e nas arengas com os Dias do Icó; ela nos bordados, nos tricôs e nas ladainhas sem fim.

Dizem que dona Maria do Rosário, já com a idade avançada, vez por outra, já em Fortaleza, onde passou a morar, ia ao Cemitério São João Batista, fazer crochê ou tricô ao lado do túmulo do amado irmão. Se amor se concretizou, com essas almas gêmeas, foi somente na eternidade, após a morte de ambos, em outro plano de existência, que não podemos compreender.

A lenda mais corrente sobre o sobrado é a existência de um porão secreto e de um túnel que ligava o sobrado ao Teatro, ambos em esquinas da Rua das Almas. Ainda hoje restam resquícios de um antigo porão existente no sobrado.

Quanto ao túnel, este foi fruto da imaginação popular. A criação dessa estória foi coisa já do século XX, mas nascida da mente dos velhos escravos, talvez até o Barão alimentasse algumas lendas sobre si. O Teatro foi construído em 1860 e o barão morreu em 19 de junho de 1880.

O sobrado já tinha quase um século de existência, portanto uma e outra edificação não tinham nada a ver uma com a outra. O certo é que o porão existiu e este foi construído para guardar as riquezas, com medo de saques, inclusive saques feitos por ocasião da Confederação do Equador (1824), quanto os irmãos Alencar e seus seguidores obrigavam aos cidadãos ricos a contribuírem com pesadas taxas para a causa separatista.

O porão, na verdade, era um cubículo de mais ou menos um metro quadrado, situado abaixo do assoalho de tábua corrida, no quarto contíguo à sala de visitas imediatamente encostado à parede. Entrava-se nele por um alçapão disfarçado no tabuado.

Possivelmente descia-se por alguma escada, em pé, ou talvez por uma corda. Neste caso, quem por ali descia era um escravo da confiança da família e o barão nunca esteve neste porão, sabendo somente o que deixava lá em baixo: Objetos de valor e moedas de ouro e prata, que “dariam p'ra encher uns três ou quatro pares de caçoás”.

Joaquim Ferreira (1889-1976) comprou o sobrado por volta de 1920, muito estragado, pois este estava fechado desde a morte de “Seu Dú”. Tinha a fama de mal assombrado. Tio Ferreira, era marido de minha tia-avó Odécia, ocasionalmente, quando crianças, os visitávamos, mostrava-nos o local exato do alçapão.

O porão não mais existia quando ele comprou o sobrado, certamente o próprio seu Dú o mandou demolir, mas restavam pistas, tanto no madeirame, quando na tijoleira do piso do primeiro andar, onde á época (por volta de 1970/80) morava dona Joaninha, sua irmã.

Vez por outra, disse-me uma vez tia Odécia, ouvia passos no sobrado, um toque no violão que ficava por sobre o sofá de palhinhas da sala, e aqui e ali alguma badalada do sino da torre da Igreja do Senhor do Bonfim, pois o sobrado é contíguo à igreja.

Certa vez, estando eu com eles, olhando da janela da sala de jantar, para uma coruja e seus filhotes, que se alojara na torre do Bonfim, o sino tocou, uma, duas badaladas... Ninguém estava por lá. Tio Ferreira olhou de rabo de olho para Tia Odécia e me levaram rapidamente, sem nada comentar, pra tomar café com bolo. Eram seis horas da tarde!

Há quem diga que ainda hoje se escutam gemidos e guizos de correntes no Sobrado do Barão. Quem passa pela calçada, perto das portas que dão para as ruas, ainda ouvem, aqui e ali essas assombrações noturnas.

Há quem diga que já viu nas horas-mortas, quando as janelas estão semi-abertas, ou mesmo fechadas, às vezes uma mulher, às vezes um homem ou às vezes os dois, nos balcões, como a contemplar a Rua Larga.

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* Texto escrito por Wasnhington Luiz Peixoto Vieira - Blog Opinion


** PARA ENTENDER O SOBRADO E O BARÃO:

1. O Sobrado do Barão do Crato: Essa construção constitui no conjunto arquitetônico do Icó, o que mais atrai a atenção. Sobre essa construção tipicamente colonial pairam lendas e velhas estórias de assombrações e desejos proibidos.

Esse imóvel pertenceu originalmente a Bernardo Duarte Brandão (Icó 15.07.1832 – Paris 19.07.1880), o 1º Barão do Crato, cujo título obteve do Imperador Pedro II. Em estilo colonial, com se janelas e respectivas portas que se abrem para o exterior, foi construído ao lado da Igreja do Bonfim, o que de já demonstra o poderio de seu proprietário. Não obstante sua aparência parecer mais antiga, foi construído no início do Século XIX.

Foi abandonado por mais de meio século por seus proprietários e herdeiros, razão pela qual sua estrutura externa ter permanecido intacta, sendo adquirido pelo Telegrafista Ferreira, para sua residência familiar.

2. Bernardo Duarte Brandão, o Barão do Crato, nasceu em 15 de Julho de 1832 em Icó, Província do Ceará e morreu em Paris em 19 de Junho de 1880. Era filho de Bernardo Duarte Brandão, rico fazendeiro das terras da Ribeira dos Icós.

Para alguns geneologistas essa família é de origem pernambucana, tendo como casal patriarca Bernardo Duarte Brandão (Pernambuco-1784) e Dª. Jacinta Augusta de Carvalho Brandão, igualmente natural de Pernambuco, que investiram seus recursos na compra de grandes extensões de terra e na criação do gado pelos sertões nordeste.


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IMAGEM: Montagem a partir de fotografia e água-forte de J.B. Debret (Paris1768 — 1848)

REFERÊNCIAS:
BATISTA, Henrique Sérgio de Araújo. Assim na morte como na vida: arte e sociedade no cemitério São João Batista (1866-1915). Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria de Cultura e Desporto, 2002. (Coleção Outras Histórias).
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Publicado por Jornalismo

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