Uma lembrança de Fortaleza e de Icó

Neste inicio de fim de semana, trazemos um artigo da cronista Ana Miranda. Ela traz suas histórias pelo Jornal O Povo e, como o periódico cita "apresenta sua família e o encontro desta com Fortaleza. Encantada, define Fortaleza como uma cidade-estado, uma cidade-interior". Além disso, cita o Icó, parte de sua história. Confira abaixo:

Fortaleza, não me deixes


Meus pais vieram do sertão paraibano para Fortaleza. Ele, nascido num engenho canavieiro próximo à linda cidade de Areia, e ela, em Cajazeiras. Areia, antigo Sertão do Bruxaxá, é cidade de balneários, neblinas e ventos alísios.

Brejo de areias claras, ali nasceram personagens de nossa história, como o pintor Pedro Américo ou o autor de A bagaceira, José Américo de Almeida. Meu pai, um Miranda Henriques, filho de senhores do engenho Riacho de Faca, saiu de sua terra para estudar agronomia em Viçosa de Minas.

Formado, não quis voltar para os engenhos da família, e tomou como primeiro trabalho a criação de um posto agrícola em Lima Campos, distrito do Icó, onde plantou um oásis ainda existente.

Cajazeiras é alto sertão no extremo Oeste da Paraíba, antiga fazenda de criação de gado de dona Aninha. Ali o famoso padre Rolim fundou a Escola de Serraria, na qual estudaram jovens de toda a região, alguns mesmo vindos de outros estados, que passavam a morar nas imediações do colégio, ou se internavam, como foi o caso do padre Cícero Romão Batista.

Por esse motivo, Cajazeiras é chamada de “a terra que ensinou a Paraíba a ler”. Minha mãe sabia ler e até escrevia poesias. Foi mandada mocinha para o Icó, onde ficou morando com uma tia que precisava de companhia. Meiga, de olhos grandes e saltados, lábios grossos, cabelos sedosos, um ar meio caboclo, mas a pele bem clara, minha mãe era considerada muito feia, e diziam-lhe que jamais iria casar.

Mas um dia caminhava por uma estrada ensolarada, debaixo de uma sombrinha, faceira e vaidosa, quando o doutor engenheiro a viu e se tomou de amores. Pediu-a em casamento, mandou-a para a Escola Doméstica de Natal, e formaram nossa família, na Praia de Iracema.

José de Alencar nasceu no antigo município de Messejana; Clóvis Beviláqua em Viçosa do Ceará, na serra de Ibiapaba; Virgílio Brígido em Santa Cruz de Uruburetama; Cego Aderaldo no Crato; Adísia Sá nasceu em Cariré, depois de Sobral um pouco, Cariré é terra da tapioca, do arroz-doce, da muriçoca; Fagner, filho de imigrante, nasceu em Fortaleza, mas foi registrado em Orós; Pedro Salgueiro nasceu em Tamboril, Helena Cardoso em Porteiras, Aparecida Cordeiro em Barro, Valdir Nóbrega no Icó... Dentre minhas admirações e meus amigos, em Fortaleza, todos são ou nascidos no interior, ou filhos do interior, ou netos do interior.

Quando me mudei para o Ceará, percebi que quase todas as pessoas de Fortaleza são ou nascidas no interior ou nos estados limítrofes, ou filhas, netas de pessoas com essa mesma origem. Descobri o que os cearenses estão cansados de sentir: Fortaleza é uma cidade-estado. Uma cidade-interior.

Seja o interior sertanejo ou o interior costeiro. Não há em Fortaleza aquela desavença entre interioranos e capitalistas, pois sempre o fortalezense tem uma tia, um avô, um sítio, uma saudade, um primo numa cidade interiorana. Essa integração harmoniosa com a província, somada à sua situação cosmopolita, à beira-mar, com portos, faz de Fortaleza uma cidade original.

O interior cede a sua pureza e bucolismo, sua naturalidade, certa rudeza campesina, uma culinária nativista, uma maior igualdade entre os espíritos, costumes tradicionais, a religiosidade, o roxo das campânulas, segredos da queijaria, olhos no céu, as cantorias, e uma fala cantada feito a das patativas...

O cosmopolitismo abre ruas largas, ergue obras coloridas, usa palavras inglesas nas vitrines, desumaniza os sentimentos, institui a indiferença e a pompa, enche as ruas de carrões cintilantes, e importa ideias maravilhosas, feito o parque do Cocó, ou horríveis, como a violência urbana. Diziam os ingleses antigos, Deus fez o campo, e o ser humano fez a cidade.

A relação mais interessante entre a cidade e o campo cearense, entre capital e interior, vejo na vida de Rachel de Queiroz. Ela nasceu em Fortaleza, mas a família morava em Quixadá e lá Rachel viveu sua primeira infância, depois morou em Fortaleza, Rio, Belém, Guaramiranga, Quixadá, onde aos quinze anos se formou professora, depois voltou para a fazenda dos pais, depois foi morar em um sítio perto de Fortaleza, onde escreveu O quinze, depois foi para Maceió, finalmente Rio...

Mas sempre teve no sangue, nas lembranças, na literatura “regionalista”, a alma da fazenda dos pais. O nome da fazenda é um lamento interiorano, uma poesia social, uma súplica afetuosa: Não Me Deixes. É o nome secreto de todas as pequenas cidades e cantinhos perdidos no amado, variado e forte estado do Ceará.
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ANA MIRANDA é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, entre outros romances, editados pela Companhia das Letras. Escreve quinzenalmente para o Vida & Arte, do Jornal O Povo
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Publicado por Jornalismo

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1 comentários :

Asclléppios disse...

Parabéns a escritora, contista, literata e romancista Ana Miranda que traz a lume um de nossos maiores cearenses de todos os tempos o Dr. Virgílio Brígido nacido na Santa Cruz de Uruburetama, na época de seu nascimento, 1854, ainda era a Sede do município, depois transferida para São Francisco, hoje Itapajé. Dr. Virgílio fora bacharel em Direito em 1880 na Escola (Academia) de Direito do Recife, advogado, jurisconsulto, em 1884 promotor em Fortaleza-CE, geógrafo, homem de letras (falava o francês e o alemão) poeta, escritor, romancista, jornalista, biógrafo, deputado federal pelo Ceará e fundou o jornal Correio Mercantil no Rio de Janeiro em 1902.