Tia CIRA, 80 ANOS *

Certamente ninguém como Tia Cira simboliza e representa tão bem os anos dourados da adolescência da maioria de nós, seus sobrinhos e sobrinhos mais velhos.

Para as primeiras levas de netos e netas de Vôzinho e Vózinha, a ida para o Icó nas férias de julho e dezembro era um sonho. Banho no açude de Manoel Sobral, canga pé no rio Salgado, pular dos arcos da ponte e de suas barreiras, assistir aos leilões das padroeiras, se embevecer com a voz de tio Auto na novena da igreja do Monte, o primeiro cigarro, o primeiro gole de álcool na figura de um prosaico Cinzano.

Os namoricos, os flertes na avenida, os bailes no teatro, o Cine São Bento, as bicicletas alugadas, quase caindo aos pedaços de tão velhas e usadas, os foguetes riscando o céu em dias de festas e nós correndo atrás pra ver onde eles caíam, o forró da bomba de gasolina de Solon de Joel, no comércio.

Os sinos da matriz a badalarem anunciando os enterros, a velha cadeia, de paredes grossas, grades pesadas e presos tristes. A chegada de Vôzinho da inspeção periódica que fazia nas linhas de transmissão dos Correios, montado na burra cansada e impaciente, os netos curiosos ao redor. O inacreditável avião que um dia pousou em plena Rua Larga, levantando poeira e alvoroçando a meninada.

A luz elétrica, puxada por um conjunto motor-gerador que havia na Rua das Almas - caminho dos defuntos que demandavam o cemitério do Monte -, só aparecia quando o sol se punha e ia embora antes da meia-noite após dois inconfundíveis e implacáveis sinais de apaga e acende. A escuridão deixava-nos tremendo de medo no fundo da rede.

Um medo confuso e difuso, onde se misturavam espíritos que vinham puxar o pé da gente, histórias de assombração com gente que já tinha morrido, mas teimava em aparecer, como sempre, o cão que pegava menino, principalmente pecadores como imaginávamos ser todos nós, pobres e inocentes garotos daquela época, a cabeça lotada de culpa, invariavelmente passada por um padre confessor mais severo e intolerante.

Um candeeiro a querosene – que a gente chamava gás - no canto do quarto atravessado por uma multidão de redes, lançava contra as paredes sombras trêmulas de fantasmas imaginários e nós não tínhamos outra saída senão fechar os olhos com força e rezar para que logo amanhecesse.

Na supervisão de tudo, cuidando da récua de sobrinhos, barulhentos, famintos, trabalhosos, despachados de Fortaleza pelas irmãs, estava essa figura de tia Cira, o olho vivo pra dizer o que a gente podia e o que não podia fazer, onde não tinha problema ir, de quem não se podia acompanhar, se a roupa estava ou não adequada para ir a tal ou qual lugar.

Rede cheirosa, leite mugido, coalhada, tapioca, a última palavra nas nossas brigas de menino. Como o retirante da “Triste Partida” de Patativa do Assaré, que tinha saudade até dos armadores das redes, eu também tenho saudade, entre muitas outras coisas, do pote da água de beber da casa de Vózinha. Caneca de flandres, borda denteada para evitar que um neto mais traquina a usasse diretamente na boca.

A casa grande de calçada alta da Rua Larga, pé direito a perder de vista, voltada de frente para a matriz altaneira da Expectação, corredor longo e barrigudo por um defeito de construção. Nela éramos recebidos com carinho e amor pela administradora maior, tutora, mãezona, às vezes severa, mas sempre responsável, solícita, correta e carinhosa, a quem as irmãs entregavam seus diabinhos sem qualquer preocupação. Era a alma da casa, quem dava a última palavra, dirigindo todos nós, inclusive Vózinha e Vôzinho.

Sua fibra de sertaneja foi posta à prova anos depois, já em Fortaleza, quando enfrentou com determinação, carinho, abnegação, paciência e dedicação, a morte sofrida de seus pais, nossos tão queridos avós, depois de muita luta, onde ela se revelou uma brava e admirável guerreira.

Nós, filhos de papai, temos uma dívida imensa com ela, pela forma como o tratou em seus últimos anos.

Chega hoje aos oitenta nos dando uma lição de vida, na disposição permanente para ajudar o próximo, na sua personalidade forte e altiva, na alegria de viver, tão bem retratada na propensão bendita de sentar numa mesa de bar e enxugar as cervejas que for preciso, quando tanta gente mais nova já se refugiou há muito tempo nos fundos de rede da vida, debulhando rosários sem fim e se fechando para o mundo.

Somos muito orgulhosos de lhe ter como tia!

Longa vida a você!

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* Texto escrito e enviado por Valdir
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Publicado por Jornalismo

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